O conto das canetas tomou seu fim em um dia de veraneio de 1974, mais precisamente no sul da Califórnia. Como a asa de uma perdiz que se perde no vislumbre do tempo. É essa lágrima vindoura que insiste em cair de nossos olhos e desce sobre os montes até seu esquecimento. Como poderíamos nos esquecer de tudo isso?
O sol estava a pino no céu e as flores murchavam devido ao calor intenso. Como algo que nos faz tão bem pode nos destruir aos poucos?
A praça estava com sua grama verdejante e a bola de futebol roçava os fios recém-crescidos. O enfadonho jardineiro já carpia sem ânimo enquanto o grupo de teatro ensaiava em bancos próximos às estátuas nobres de pessoas já esquecidas. No palco que era a vida, eles já haviam ganhado o seu papel.
O ensaio estava ocorrendo nas cercanias, próximo a um ninho de gatos vadios. Curiosamente, os gatos pensavam o mesmo em relação ao ensaio que ocorria, perturbando a sua paz.
Irene, com seus negros cabelos esvoaçantes, bradava aos ventos e bradaria até mesmo aos surdos o seu monólogo:
“Onde você estará com seus olhos de criança tão inocentes e puros encrustados entre seu rosto velho? Onde estarão todas aquelas tardes ociosas em que o tempo não corria para não atrapalhar nossa reunião?
Onde estarão todos aqueles abraços de veludo e a genuína felicidade que te invadia ao me ver cruzar a porta?
Onde você estará agora? Poderá me ver e ver a parte de mim que morreu com você?
Os pássaros voarão quando nos reencontrarmos? O que haverá?
Mas, onde, onde, onde você estará?”
Poucos metros de lá, havia o linguista que, com seus olhos ávidos, percorria páginas e mais páginas dos livros tentando entender todo o significado das palavras.
Como sempre conseguia ficar com aquele casacão preto e o cachecol?
Alheio a toda aquela beleza, não conseguia compreender que a única palavra que jamais aprenderia seria o amor.
Distante dali, havia a babá empurrando diversos carrinhos em uma agitação plácida. Poucos sabiam ler aqueles olhos que diziam:
“Se pudesse, abraçaria todas as crianças do mundo e a todos aqueles cuja inocência é intocada. Os colocaria embaixo dos braços e nada jamais lhes aconteceria.”
O encanador marchava a passos dolorosos, sacudindo violentamente a sua maleta. Todo o fardo dos anos lhe caía sobre as costas. Todas as dores, desamparos e malevolências perturbavam a sua mente. Eram todos os sonhos frustrados e noites mal dormidas.
Mas, ele só havia tido uma longa tarde e estava cansado. Apenas isso, apenas isso.
Logo Peter entrou em cena com seus cachinhos de anjo ruivo, shorts cáqui e all star pretos mal amarrados. Uma criança de sete anos vivendo em um corpo de um homem de dezenove.
Vivia perambulando pelas lojas ao redor, pedindo para as vendedoras canetas pretas e como era a sua satisfação quando ganhava uma. Corria para o centro do parque com a pequenina em mãos e a colocava na frente do sol, apresentando-a a todos como sua nova amiga.
O único que destoava do ambiente era o louco. Vivia batendo três vezes na madeira e seguidamente nos lábios após murmurar:
-74, 19 e 22.
Mas, bastava ignorá-lo. Somente isso.
Um dia, o filósofo, que vivia mais com a cabeça entre as estrelas do que o louco, por trás de todo o seu conhecimento, redigiu o documento que iria trazer a paz sobre toda a América. O tão aclamado manifesto pela liberdade.
Somente precisava que alguém o levasse aos correios. Como era intelectual e ocupadíssimo com questões de grande granejo, não poderia fazer isso. Mas, tão logo viu quem poderia fazê-lo.
-Peter, você quer ganhar dinheiro me fazendo um favor? – disse ao rapaz.
-Não.
-Mas, se eu lhe desse uma caneta preta?
Os olhos do jovem brilharam quando viu o que estava à sua frente: uma caneta esferográfica preta e de ponta fina. Além de tudo, estava novinha!
-Sim, eu quero – respondeu, já com o prêmio em mãos.
Após receber as instruções, já se apressara feliz ao ir quando, repentinamente, um ataque aéreo se abateu sobre o parque.
Quer fosse pelo manifesto escrito ou por uma guerra que eclodira longe dali.
Apesar da catástrofe, todos já estavam levantados dos pequenos escombros. Os atores estavam bem e em poucos meses já estariam se apresentando novamente.
Por sorte, a babá havia conseguido se esconder com as crianças em uma loja próxima.
Em choque, o encanador admirava a capacidade da maleta de ferramentas que sobrevivera a tudo ilesa. Nada abala o proletariado.
O filósofo estava bem, ninguém se importara em machucá-lo.
Tudo bem, apesar de um detalhe que, após ser visto, chocou a todos e foi capaz de despertar um grito de pavor do coração gelado de Irene.
Deitado, com o peito aberto e os olhos fechados, estava Peter em meio às suas tão queridas canetas.
Saibam os céus ou saibam a Terra o porquê de todas aquelas esferográficas terem sido arremessadas para perto de seu desfalecido corpo.
Em uma distante base militar, uma equipe tática era duramente repreendida pelo terrível erro de cálculo que cometera naquela tarde de 74, ao disparar seus torpedos no quadrante sul, na latitude 19, longitude 22.